"Preparar a Reestruturação da Dívida
Para Crescer Sustentadamente
Nenhuma estratégia de combate à crise poderá ter êxito se não conciliar a
resposta à questão da dívida com a efectivação de um robusto processo de
crescimento económico e de emprego num quadro de coesão e efectiva
solidariedade nacional. Todos estes aspectos têm de estar presentes e actuantes
em estreita sinergia. A reestruturação da dívida é condição sine qua non para o alcance desses objectivos.
O que reúne aqui e agora os signatários, que têm posições diversas sobre as
estratégias que devem ser seguidas para responder à crise económica e social
mas que partilham a mesma preocupação quanto ao peso da dívida e à gravidade
dos constrangimentos impostos à economia portuguesa, é tão somente uma tomada
de posição sobre uma questão prévia, a da identificação das condições a que
deve obedecer um processo eficaz de reestruturação.
O que a seguir se propõe tem sempre em atenção a necessidade de prosseguir
as melhores práticas de rigorosa gestão orçamental no respeito das normas
constitucionais bem como a discussão de formas de reestruturação honrada e
responsável da dívida no âmbito de funcionamento da União Económica e
Monetária, nos termos adiante desenvolvidos.
A Actual Dívida é Insustentável na Ausência de Robusto e Sustentado
Crescimento
A crise internacional iniciada em 2008 conduziu, entre outros factores de
desequilibrio, ao crescimento sem precedentes da dívida pública. No biénio
anterior, o peso da dívida em relação ao PIB subira 0.7 pontos percentuais, mas
elevou-se em 15 pontos percentuais no primeiro biénio da crise. No final de
2013 a dívida pública era de 129% do PIB e a líquida de depósitos de
cerca de 120%. O endividamento externo público e privado ascendeu a 225% do PIB
e o endividamento consolidado do sector empresarial a mais de 155% do PIB. A resolução
da questão da dívida pública não só se impõe pelas suas finalidades directas
como pela ajuda que pode dar à criação de condições favoráveis à resolução dos
problema específicos do endividamento externo e do sector empresarial, que são
igualmente graves.
A dívida pública tornar-se-á insustentável na ausência de crescimento
duradouro significativo: seriam necessários saldos orçamentais primários
verdadeiramente excepcionais, insusceptíveis de imposição prolongada.
A nossa competitividade tem uma base qualitativa demasiado frágil para
enfrentar no futuro a intensificação da concorrência global. É preciso uma
profunda viragem, rumo a especializações competitivas geradas pela qualidade,
pela inovação, pela alta produtividade dos factores de produção envolvidos e
pela sagaz capacidade de penetração comercial em cadeias internacionais ou
nichos de mercado garantes de elevado valor acrescentado.
Trata-se certamente de um caminho difícil e de resultados diferidos no
tempo. A sua materialização exige continuidade de acção, coerência de
estratégias públicas e privadas, mobilização contínua de elevado volume de
recursos, bem como de cooperação nos mais diversos campos de actividade
económica, social e política. Será tanto mais possível assegurar a
sustentabilidade da dívida, quanto mais vigoroso for o nosso empenho colectivo
no aproveitamento das oportunidades abertas pela reestruturação no sentido de
promover esse novo padrão de crescimento.
É Imprescindível Reestruturar a Dívida para Crescer, Mantendo o Respeito
pelas Normas Constitucionais
Deixemo-nos de inconsequentes optimismos: sem a reestruturação da dívida
pública não será possível libertar e canalizar recursos minimamente suficientes
a favor do crescimento, nem sequer fazê-lo beneficiar da concertação de
propósitos imprescindível para o seu êxito. Esta questão é vital tanto para o
sector público como para o privado, se se quiser que um e outro cumpram a sua
missão na esfera em que cada um deles é insubstituível.
Sem reestruturação da dívida, o Estado continuará enredado e tolhido na vã
tentativa de resolver os problemas do défice orçamental e da dívida pública
pela única via da austeridade. Deste modo, em vez de os ver resolvidos,
assistiremos muito provavelmente ao seu agravamento em paralelo com a acentuada
degradação dos serviços e prestações provisionados pelo sector público.
Subsistirá o desemprego a níveis inaceitáveis, agravar-se-á a precariedade do
trabalho, desvitalizar-se-á o país em consequência da emigração de jovens
qualificados, crescerão os elevados custos humanos da crise, multiplicar-se-ão
as desigualdades, de tudo resultando considerável reforço dos riscos de
instabilidade política e de conflitualidade social , com os inerentes custos
para todos os portugueses.
Por outro lado, a economia sofrerá simultaneamente constrangimentos
acrescidos, impeditivos em múltiplas dimensões do desejável crescimento do
investimento, da capacidade produtiva e da produtividade, nomeadamente pela
queda da procura e desestruturação do mercado, diminuição da capacidade de
autofinanciamento, degradação das condições de acesso, senão mesmo rarefacção
do crédito da banca nacional e internacional, crescente liquidação de
possibilidades competitivas por défice de investimento e inovação. Por maioria
de razões, o ganho sustentado de posições de referência na exportação ficará
em risco e inúmeras empresas ver-se-ão compelidas a reduzir efectivos.
Há que encontrar outros caminhos que nos permitam progredir. Esses caminhos
passam pela desejável reestruturação responsável da dívida através de processos
inseridos no quadro institucional europeu de conjugação entre solidariedade e
responsabilidade.
Há alternativa
A Reestruturação Deve Ocorrer no Espaço Institucional Europeu
No futuro próximo, os processos de reestruturação das dívidas de Portugal e
de outros países - Portugal não é caso único - deverão ocorrer no espaço
institucional europeu, embora provavelmente a contragosto, designadamente
dos responsáveis alemães. Mas reacções a contragosto dos
responsáveis alemães não se traduzem necessariamente em posições de veto
irreversível. Veja-se o que vem sucedendo com a Grécia, caso irrepetível, de
natureza muito diferente e muito mais grave, mas que ajuda a compreender a
lógica comportamental dos líderes europeus. Para o que apontam é para
intervenções que pecam por serem demasiado tardias e excessivamente curtas ou
desequilibradas. Se este tipo de intervenções se mantiver, a União Europeia
correrá sérios riscos.
Portugal, por mais que cumpra as boas práticas de rigor orçamental de
acordo com as normas constitucionais - e deve fazê-lo sem hesitação,
sublinhe-se bem - não conseguirá superar por si só a falta dos instrumentos que
lhe estão interditos por força da perda de soberania monetária e cambial. Um
país aderente ao euro não pode ganhar competitividade através da política
cambial, não lhe é possível beneficiar directamente da inflação para reduzir o
peso real da sua dívida, não pode recorrer à política monetária para contrariar
a contracção induzida pelo ajustamento e não tem Banco Central próprio que
possa agir como emprestador de último recurso. Mas se o euro, por um lado,
cerceia a possibilidade de uma solução no âmbito nacional, por outro convoca
poderosamente a cooperação entre todos os Estados-membros aderentes. A razão é
simples e incontornável: o eventual incumprimento por parte de um país do euro
acarretaria, em última instância, custos dificeis de calcular mas
provavelmente elevados, incidindo sobre outros países e sobre o próprio euro.
Prevenir as consequências nefastas desta eventualidade é, de facto, um
objectivo de interesse comum que não pode ser ignorado.
Após a entrada em funções da nova Comissão Europeia, deverá estar na
agenda europeia o início de negociações de um acordo de amortização da dívida
pública excessiva, no âmbito do funcionamento das instituições europeias Na
realidade, esse processo já foi lançado e em breve iniciará o seu caminho no
contexto do diálogo inter-institucional europeu, entre Comissão, Conselho e
Parlamento.É essencial que desse diálogo resultem condições fundamentais para
defender sem falhas a democracia nos Estados-membros afectados, como valor
fundacional da própria União.
Três Condições a que a Reestruturação Deve Obedecer
A Comissão Europeia mandatou um Grupo de Peritos para apresentar,
designadamente, propostas de criação de um fundo europeu de amortização da
dívida. O seu relatório será publicado antes das próximas eleições para o
Parlamento Europeu. Essas propostas juntar-se-ão a várias
outras formuladas nos últimos quatro anos. Recorde-se que a presente tomada de
posição visa apenas a questão prévia da identificação das condições a que deve
obedecer um processo eficaz de reestruturação Serve-nos de guia o exposto sobre
a dívida portuguesa, mas pensamos que as condições adiante sugeridas defendem
também os melhores interesses comuns dos países do euro.
Tendo presente que a capacidade para trazer a dívida ao valor de referencia
de 60% do PIB depende fundamentalmente de três variáveis (saldo orçamental
primário, taxa de juro implícita do stock de dívida e taxa nominal de
crescimento da economia), identificam-se três condições a que deve obedecer a
reestruturação da dívida.
1) Abaixamento da taxa média de juro
A primeira condição é o abaixamento significativo da taxa média de juro do
stock da dívida, de modo a aliviar a pesada
punção dos recursos financeiros nacionais exercida pelos encargos com a dívida,
bem como ultrapassar o risco de baixas taxas de crescimento, difíceis de evitar
nos próximos anos face aos resultados diferidos das mudanças estruturais
necessárias. O actual pano de fundo é elucidativo: os juros da dívida pública
directa absorvem 4.5%. do PIB. Atente-se ainda no facto de quase metade da
subida da dívida pública nos últimos anos ter sido devida ao efeito dos juros.
2) Alongamento dos prazos da dívida
A segunda condição é a extensão das maturidades da dívida para 40 ou mais
anos. A nossa dívida tem picos violentos. De agora até 2017 o reembolso da
dívida de médio e longo prazo atingirá cerca de 48 mil milhões de euros.
Alongamentos da mesma ordem de grandeza relativa têm respeitáveis antecedentes
históricos, um dos quais ocorreu em benefício da própria Alemanha. Pelo Acordo
de Londres sobre a Dívida Externa Alemã, de 27 de Fevereiro de 1953, a dívida
externa alemã anterior à II Guerra Mundial foi perdoada em 46% e a posterior à
II Guerra em 51,2%. Do remanescente, 17% ficaram a juro zero e 38% a juro de
2.5% Os juros devidos desde 1934 foram igualmente perdoados. Foi tambem
acordado um período de carência de 5 anos e limitadas as responsabilidades
anuais futuras ao máximo de 5% das exportações no mesmo ano. O último
pagamento só foi feito depois da reunificação alemã, cerca de 5 décadas depois
do Acordo de Londres. O princípio expresso do Acordo era assegurar a
prosperidade futura do povo alemão, em nome do interesse comum. Reputados
historiadores económicos alemães são claros em considerar que este excepcional
arranjo é a verdadeira origem do milagre económico da Alemanha. O Reino
Unido, que alongou por décadas e décadas o pagamento de dívidas suas, oferece
outro exemplo. Mesmo na zona euro, já se estudam prazos de 50 anos para a
Grécia. Portugal não espera os perdões de dívida e a extraordinária cornucópia
de benesses então concedida à Alemanha mas os actuais líderes europeus devem
ter presente a razão de ser desse Acordo: o interesse comum. No actual
contexto, Portugal pode e deve, por interesse próprio, responsabilizar-se
pela sua dívida, nos termos propostos, visando sempre assegurar o crescimento
económico e a defesa do bem-estar vital da sua população, em condições que são
também do interesse comum a todos os membros do euro.
3) Reestruturar, pelo
menos, a dívida acima de 60% do PIB
Há que estabelecer qual a parte da dívida abrangida pelo processo especial
de reestruturação no âmbito institucional europeu. O critério de Maastricht
fixa o limite da dívida em 60% do PIB. É diversa a composição e volume
das dívidas nacionais. Como é natural, as soluções a acordar devem reflectir
essa diversidade. A reestruturação deve ter na base a dívida ao sector oficial,
se necessário complementada por outras responsabilidades de tal modo que a
reestruturação incida, em regra, sobre dívida acima de 60% do PIB. Nestes
termos, mesmo a própria Alemanha poderia beneficiar deste novo mecanismo
institucional, tal como vários outros países da Europa do Norte.
Os mecanismos da reestruturação devem instituir processos necessários
à recuperação das economias afectadas pela austeridade e a recessão, tendo em
atenção a sua capacidade de pagamento em harmonia com o favorecimento do
crescimento económico e do emprego num contexto de coesão nacional. Se forem
observadas as três condições acima enunciadas, então será possível uma solução
no quadro da União e da zona euro com um aproveitamento máximo do quadro
jurídico e institucional existente.
A celeridade da aprovação e entrada em funcionamento do regime de reestruturação é vital. A única maneira de acelerar essa negociação é
colocá-la desde o início no terreno firme do aproveitamento máximo da
cooperação entre Estados-membros, de modo a acolher o alongamento do prazo de
reestruturação, a necessária redução de juros e a gestão financeira da
reestruturação, tendo em atenção as finalidades visadas pelos mecanismos de
reestruturação.
Cada país integraria em conta exclusivamente sua a dívida a
transferir e pagaria as suas responsabilidades, por exemplo, mediante a
transferência de anuidades de montantes e condições pré-determinadas adequadas
à capacidade de pagamento do devedor. As condições do acordo a estabelecer
garantiriam a sua estabilidade, tendo em conta as responsabilidades assumidas
por cada Estado-membro. Deste modo, a uma sã e rigorosa gestão orçamental no
respeito das normas constitucionais acresceria o contributo da cooperação
europeia assim orientada. As condições relativas a taxas de juro, prazos e
montantes abrangidos devem ser moduladas conjugadamente, a fim de obter a
redução significativa do impacto dos encargos com a dívida no défice da balança
de rendimentos do país e a sustentabilidade da dívida pública, bem como a
criação de condições decisivas favoráveis à resolução dos constrangimentos
impostos pelo endividamento do sector empresarial público e privado e pelo
pesado endividamento externo.
O processo de reestruturação das dívidas públicas já foi lançado pela Comissão
Europeia.Fomos claros quanto a condições a que deve obedecer esse processo. A
sua defesa desde o o ínicio é essencial. O nosso alheamento pode vir a ser
fatal para o interesse nacional.
A reestruturação adequada da dívida abrirá uma oportunidade ímpar, geradora
de responsabilidade colectiva, respeitadora da dignidade dos portugueses e
mobilizadora dos seus melhores esforços a favor da recuperação da economia e do
emprego e do desenvolvimento sustentavel com democracia e responsabilidade
social.
Por quanto ficou dito, os signatários reiteram a sua convicção de que a
estratégia de saída sustentada da crise exige a estreita harmonização das
nossas responsabilidades em dívida com um crescimento duradouro no quadro
de reforçada coesão e solidariedade nacional e europeia.
Estes são os termos em que os signatários apelam ao debate e à preparação,
em prazo útil, das melhores soluções para a reestruturação da dívida." (fonte: jornal Expresso)
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